Walter Benjamin, o marxismo e a história: 5 questões fundamentais

Walter Benjamin

Walter Benjamin*

Texto escrito por Rafael Vieira, doutorando em Direito.

O marxismo de Walter Benjamin é de fato bastante singular. Seu contato mais aprofundado com a obra de Marx e com o marxismo enquanto uma filosofia da práxis (a expressão é de Gramsci, não de Benjamin) ocorre em 1923-1924 por uma conjunção de fatores que vão desde a leitura da obra de Lukács “História e Consciência de Classe”, suas discussões com a militante comunista letã Asja Lácis e também em função de perceber na obra de Marx um poderoso instrumento de crítica ativa ao aprofundamento das contradições sociais na República de Weimar depois da derrota dos setores combativos do movimento dos trabalhadores no ciclo revolucionário alemão que se abre em 1918-1919.
Embora a partir de 1923-24 seu pensamento ganhe novos contornos com Marx, a crítica ao capitalismo e à civilização industrial moderna aparecem em alguns de seus textos desde 1915 pelo menos, sendo uma espécie de fio condutor de sua obra. Essa crítica é feita nesse primeiro momento a partir de uma associação complexa entre um romantismo revolucionário e uma interpretação particular do messianismo judaico, referências essas que não desaparecem (embora sejam reposicionadas) depois do contato com Marx e alguns de seus intérpretes. Nesse breve texto, o objetivo é tocar em alguns pontos que considero importantes na relação de Benjamin com a obra de Marx e com algumas correntes distintas do marxismo. A ideia é levantá-los como aspectos essenciais de uma agenda de pesquisa e como temas centrais de debate, sem qualquer pretensão de esgotá-los.

1 – A centralidade das lutas de classes –

O autômato e o anão: Benjamin compara o materialismo histórico a um falso robô, movido, secretamente, pela teologia. Esta combinação é que faz os lances vencedores na luta de classes.

O autômato e o anão: Benjamin compara o materialismo histórico a um falso robô, movido, secretamente, pela teologia. Esta combinação é que faz os lances vencedores na luta de classes.

Leandro Konder, Theodor Adorno e Michael Löwy são alguns dos autores que ao comentar a obra de Benjamin chamam a atenção para a centralidade conferida por ele às lutas de classes. Embora a interpretação de tendências estruturais seja um componente essencial para se pensar a ação, é na luta concreta entre opressores e oprimidos, exploradores e explorados que se jogam os lances decisivos da história. As análises históricas tem um caráter tendencial justamente porque há um conteúdo em seu interior que não pode ser exatamente mensurado, não por uma limitação dos métodos de conhecimento, mas porque ali é o lugar da práxis humana transformadora, certamente condicionada por estruturas sociais, políticas e econômicas, mas capaz de ir além. Benjamin recusa ao longo de sua trajetória o economicismo, o determinismo mecanicista e noções como “época de decadência” como fundamentos de análise histórica, e aposta suas forças até seu último escrito nos explorados e oprimidos enquanto classe que viria a consumar a tarefa de libertação das gerações de derrotados.

2 – A teoria do progresso –

Quadro de Paul Klee, no qual Benjamin vê o anjo da História.

Quadro de Paul Klee, no qual Benjamin vê o anjo da História.

É possível que dentre os marxistas do começo do século XX, Walter Benjamin tenha sido o mais radical dos críticos à filosofia da história orientada pela noção de progresso (essa crítica também aparece em Rosa Luxemburgo). Para Benjamin, a imagem do progresso certo e exato direcionado a um fim histórico tem um sentido estratégico para aqueles que dominam ou para os resignados, ao protelar e adiar indefinidamente a emancipação humana relegando o presente a um instante no meio de um fluxo homogêneo, contínuo e linear. As diferentes variantes teórico-práticas que entendem o progresso como norma histórica são tributárias de uma perspectiva que termina por apagar os retrocessos e a barbárie contra os “sem nome” e os vencidos da história, como um momento passageiro ou como algo “menor” no caminhar contínuo de uma marcha com início, meio e fim definidos. Para contrapor-se a esse tipo de percepção, Benjamin será um autor que elaborará diferentes alternativas metodológicas, tanto na busca de uma outra concepção de tempo (o tempo-agora de que fala nas teses “Sobre o Conceito de História”) radicalmente oposta à ideologia moderna do progresso, quanto pela valorização dos “farrapos”, dos “restos” e dos “cacos” da história como elementos de uma tarefa ético-política de rememoração e de ação.

Para Benjamin, a percepção do progresso como norma histórica está presente em correntes de pensamento que procuram eternizar o capitalismo, mas também aparece no marxismo vulgar da social-democracia alemã e do stalinismo. Benjamin toma para si em seu trabalho sobre as “Passagens” a tarefa de retomar Marx e o materialismo histórico com o objetivo de: “considerar como um dos objetivos metodológicos desse trabalho mostrar claramente um materialismo histórico que tenha aniquilado de seu interior a ideia de progresso. Precisamente aqui, o materialismo tem todos os motivos para se separar com nitidez da forma burguesa de pensar”1.

3 – A memória e o passado –

Manuscrito da IX Tese Sobre o Conceito de História:  "Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele [o anjo] vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos."

Manuscrito da IX Tese Sobre o Conceito de História: “Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele [o anjo] vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos.”

O marxismo de Benjamin tem os olhos voltados para o passado, e não para o futuro. Para ele, a luta é travada em memória dos antepassados escravizados e não na imaginação dos descendentes liberados, por isso estabelece uma delicada ponte entre memória, passado e presente. Ao mirar os “rastros” e “restos” que a historiografia dominante tem por hábito deixar de lado, está preocupado não só com o passado propriamente dito, mas no momento crítico em que o acesso a esse passado aparentemente esquecido é capaz de iluminar o presente, reconfigurando a relação presente-passado. Benjamin é consciente da relação entre as memórias e as disputas do presente, e enxerga nela um elemento essencial nas lutas de classes e na narr-ação contra-hegemônica. Para tanto, procura despertar no passado as centelhas de esperança não cumpridas, e fazer justiça às gerações de vencidos que tombaram no decorrer da marcha de um formato de sociabilidade que se reproduz produzindo a barbárie.

4 – A teoria da revolução –

Revolucionários espartaquistas em Berlim: A violência revolucionária como violência de outro tipo.

Revolucionários espartaquistas em Berlim: A violência revolucionária como violência de outro tipo.

Benjamin foi um estudioso de diferentes processos revolucionários no século XIX e XX. Para ele, o historicismo (corrente historiográfica que Benjamin combatia) e sua apologia estão empenhados em “encobrir os momentos revolucionários do curso da história”2. Ao teorizar sobre a revolução, buscava romper epistemologicamente com um pensamento (e uma prática) orientado por uma percepção dogmática da relação entre meios e fins, ao se recusar a compreender a revolução como um meio para um fim definido – que nos colocaria novamente diante de uma marcha orientada e de uma concepção de tempo homogêneo. Para ele, as revoluções são o gesto de “agarrar o freio de emergência” do processo que conduz a humanidade ao abismo (social, humano e também ecológico, conforme aparece em suas Teses), trazendo com ela a possibilidade de construção da história sobre bases radicalmente distintas.

Benjamin também elabora, em um texto denso e extremamente difícil3, uma teoria da violência revolucionária como um contraponto teórico-prático ao que chama de violência mítico-jurídica, essa última como expressão típica da sociedade burguesa. Essa noção será debatida e comentada posteriormente por autores como Giorgio Agamben, Herbert Marcuse e Slavoj Zizek.

5 – Sobre a construção do porvir, ou o comunismo –

“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras'” (Quadro O Motim, de Daumier.)

Para Benjamin, o comunismo não é nem uma utopia e nem o fim da história, mas a interrupção da atual concepção (e por isso, necessariamente vinculada a uma crítica radical dos fundamentos da sociabilidade burguesa) que inaugura uma condição de experimentação distinta da história. Essa construção não se dá no vazio, e se põe em relação direta com o passado e com as alternativas à modernidade hegemônica criadas pelas lutas dos explorados e oprimidos (numa necessidade de retomá-las ao mesmo tempo em que são transformadas, já que em Benjamin, a retomada do passado não significa um desejo de restauração nostálgica daquele momento, mas um despertar transformado e transformador daquilo que ficou soterrado no passado e que poderia ter ganhado voz), e com os movimentos emancipatórios do presente, buscando em suas práticas, dessa vez redimensionadas, os fundamentos daquilo que vem.

Essa percepção se aproxima da forma como Marx concebe o comunismo nas cartas à Ruge de 1843 e em “A ideologia Alemã” (um texto que não se sabe ao certo se Benjamin chegou a ter contato), no qual recusa-se a projetar um futuro idealizado ao indicar que: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento [devem ser julgadas segundo a própria realidade efetiva] resultam dos pressupostos atualmente existentes”4.

***

Para o(a) leitor(a) que eventualmente quiser ter contato com uma introdução a obra de Benjamin, sugeriria os seguintes textos em português: “Walter Benjamin – O marxismo da melancolia” de Leandro Konder; “Walter Benjamin – Os cacos da história” de Jeanne Marie Gagnebin; e “Walter Benjamin – Aviso de Incêndio: Uma leitura das teses ‘Sobre o Conceito de História’” de Michael Löwy.

Notas:

1. BENJAMIN, Walter. Libro de los Pasajes. Madrid: Ediciones Akal, 2005, p. 462-463 [N 2,2].

2. BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo/Belo Horizonte: Imprensa Oficial/Editora da UFMG, 2007, p. 516 [N 9a, 5].

3. Refiro-me ao seu ensaio, de 1921, intitulado “Crítica da Violência – Crítica do Poder”. Esse texto tem ganhado traduções recentes, mas ainda é bastante importante a tradução de Willi Bole em: BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de Cultura – Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, p.160-175.

4. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.38, nota a (nota de Marx). Essa característica também é ressaltada em uma carta de Marx à Ruge, de setembro de 1843. Carta reproduzida em: MARX, Karl. Sobre a questão Judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p.70-73.

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